Retour

Chaves Tomás


Cartas de Guerra

Decorria o ano de 1964 em Portugal. Em Lisboa, mais precisamente no Cais da Rocha do Conde de Óbidos, partia o navio Vera Cruz a caminho do continente africano. A bordo da embarcação, viajavam cerca de 3500 militares ao serviço do Estado Novo para combater contra a independência das colónias portuguesas. De um lado, no cais, ficaram os familiares desolados e impotentes por ver partir os pais, filhos ou netos sem poderem mudar essa decisão. As lágrimas escorriam, mas havia esperança de que se iriam voltar a reencontrar. Do outro, no navio, os militares que dominados pelo desejo de cumprir a missão que lhes fora imposta não podiam fugir ao medo que o desafio lhes impunha. O mar agitado e furioso parecia ditar o destino incerto daquela longa viagem que mal começara.

Entre esta vasta quantidade de militares estava Francisco, um jovem de 22 anos de idade que, até então, trabalhava como alfaiate numa vila muito próxima da sua aldeia natal. Todos os dias pela manhã percorria nove quilómetros para ir trabalhar. Como na época não era habitual a existência de veículos motorizados nos meios rurais, não era o único a percorrer aquele caminho com o intuito de se deslocar para o emprego. Havia muitos outros jovens e adultos que faziam aquele trajeto a caminhar ou de bicicleta. Enquanto caminhavam para o trabalho tentavam arranjar maneira de tirar da cabeça o longo e cansativo dia que teriam pela frente. Francisco era especialista na arte de fazer as pessoas rir e todos os dias não faltavam novas piadas para entreter quem o acompanhava. A caminhada que durava algumas horas, rapidamente se transformava num passeio de poucos minutos.

Após a longa viagem, atracaram em Angola, uma das colónias portuguesas e, prontamente, foram encaminhados para os postos e informados das funções que iriam desempenhar. Francisco ficou responsável por transportar médicos e padres que iam aos vários postos de militares portugueses. Estes curavam os feridos resultantes dos conflitos e rezavam a missa, respetivamente. Além disso também tinha a função de vigiar o posto onde estava instalado.

Certo dia, enquanto Francisco estava de vigia no posto, fez-se ouvir o rebentar de uma bomba a poucos metros e, de seguida, foi rapidamente acompanhada com tiros. Imediatamente as tropas africanas fizeram um cerco ao posto e iniciou-se ali um conflito. Apesar dos militares portugueses estarem em oposição aos confrontos bélicos contra aquele povo, tinham sido obrigados a fazer aquele serviço e, caso não contra-atacassem, seriam mortos pelos africanos. Mesmo com todo o ruído constante dos disparos das armas e das hélices dos helicópteros, que sobrevoavam o terreno com a intenção de transportar os feridos, que com o avançar do combate se multiplicavam, ouviam-se os militares feridos desesperados. Quando o conflito chegou ao fim, Francisco estava destroçado com tudo o que tinha acontecido. Ao olhar à sua volta via centenas de corpos no chão, alguns mortos e outros a gritar em sofrimento. Francisco estava paralisado, sem saber o que fazer no meio daquele caos. Acudia aos médicos e enfermeiros que corriam como predadores a caçar as suas presas para socorrer os militares. Muitos dos intervenientes deste conflito ficaram sem braço ou perna, outros tiveram ferimentos ligeiros ou não tiveram ferimentos e muitos, lamentavelmente, acabaram por falecer. Agradavelmente, Francisco não tinha sofrido qualquer ferimento. Mas, ao contrário do que realmente tinha acontecido, na aldeia natal de Francisco corriam rumores que ele poderia ter morrido no combate. Os pais, quando souberam da notícia, ficaram desolados e prontamente escreveram um aerograma, enviaram para Angola e aguardaram sem esperança pela resposta do filho. Quando esta carta enviada por correio aéreo desde Portugal chegou a Francisco, ele rapidamente enviou a resposta para os tranquilizar.

Após este e muitos outros acontecimentos, terminaram os dois anos de serviço militar. O regresso ficou a cargo do navio Niassa. A viagem ficou marcada pela felicidade e ansiedade dos militares em voltar a casa. Em Lisboa esperavam ansiosas algumas das pessoas que ali tinham estado dois anos antes, porque as outras, infelizmente, tinham perdido os familiares na guerra.

Dois anos após cumprir o serviço militar, Francisco ingressou na Guarda Fiscal. Durante os primeiros anos com esta profissão, percorreu vários postos do país. Desde o Algarve ao Alentejo, terminando na vila na qual trabalhara como alfaiate antes de ir para Angola.

Cerca de seis anos após iniciar as funções como Guarda Fiscal, na madrugada do dia 25 de abril de 1974 aconteceu uma grande revolução política e social que depôs o Estado Novo e instaurou a Democracia e a Liberdade. Nos pequenos meios rurais, como a vila onde Francisco trabalhava, durante a manhã do mesmo dia, as notícias corriam fugazmente apesar da revolução ter acontecido a centenas de quilómetros. A população ouviu no rádio e rapidamente saiu à rua para espalhar a notícia. Em toda a vila reinava a alegria após esta notícia que o regime salazarista tinha sido derrubado. As pessoas viviam com as asas presas, num ambiente constante de opressão e medo. Depois dessa madrugada, que era esperada há mais de quarenta anos pelos portugueses, tudo isso chegara ao fim.

Francisco, já casado e com dois filhos, viveu a partir desse dia em liberdade e sem medo da censura e da opressão que o regime lhe impunha. Agora recorda as histórias que tinha vivido na guerra revelando-as às suas gerações futuras. 




Envoyé: 20:44 Sat, 23 March 2024 by : Chaves Tomás age : 17