Voltar

Delgado Tiago


Do outro lado da porta

Tudo estava a correr bem antes de apareceres na minha vida. Não me querendo exibir, mas tudo era perfeito!  

Na escola ninguém me parava, as notas estavam a subir a uma velocidade estratosférica e eu nem me estava a reconhecer; o meu grupo de amigos era o melhor: pequeno, mas bom. Todos nos dávamos na perfeição; em casa era igual, estávamos todos em sintonia, vivia momentos como há muito não acontecia. Tudo era perfeito como as mais belas sinfonias da história da música. Nada podia correr melhor… 

Ou estaria enganada? 

Não, não… analisando toda a minha vida esta era sem dúvida a minha melhor fase até àquele dia! Melhor era impossível! 

Até que tu apareceste e deste-me um novo sentido à vida. Não acredito em milagres nem em amores à primeira vista, mas... estaria de novo enganada? A primeira vez que te vi, através daquilo que agora, graças a ti, gosto de chamar o meu “portal da felicidade”, o meu estômago passou a saber o que eram as famosas borboletas na barriga e, pelos vistos, elas acreditavam no amor à primeira vista. Senti uma estranha energia que deitou por terra tudo aquilo em que acreditava. Desde esse dia, nunca passei tanto tempo colada à porta como agora que vives no mesmo prédio que eu. O que gostava mais da porta não era da textura ou cor, mas sim daquele “olho mágico” que me revelava todo um novo mundo no qual eras o único protagonista. 

Através do meu “portal” via-te a carregar caixas e mais caixas para o teu novo lar, atarefado como formiga à procura de alimento para aguentar o longo e rigoroso inverno. Via que o cansaço começava a dar os primeiros sinais de vida. Mas tu não paravas! Continuavas a subir e a descer aqueles degraus que te iam enfraquecendo cada vez mais como se de uma teia de aranha se tratasse. 

Até que, com as poucas forças que te restavam, pousaste a caixa que trazias contigo mesmo à beira da minha porta. Não sei se foi obra do destino (coisa em que também não acredito), mas recuei um passo com medo de que pudesses ouvir a minha respiração. Aos poucos, a medo, muito, muito cautelosamente, voltei à minha posição original para te observar. O medo que senti quando paraste à minha porta não se compara à ansiedade e ao terror que me invadiram quando espreitei pelo “olho mágico” e olhavas para mim como se a porta nem sequer existisse. Senti-me exposta e apavorada, quando os teus olhos penetrantes prenderam os meus como se não existisse barreira entre nós. O tempo tinha parado e os ponteiros do relógio, que até então faziam o seu trabalho em modo automático, naquele momento, congelaram. Tudo orbitava em torno de um silêncio angustiante e ensurdecedor. Cresceu em mim, como um vulcão em erupção, uma sensação de que estava a ser invadida. Fiquei imóvel. Aquela porta, aquela barreira, que sempre esteve ali como um escudo protetor para que ninguém me visse, quando olhaste para mim, desapareceu. Éramos só eu e tu. Mas, rapidamente, desviaste os olhos para o chão e aí pude respirar de alívio. Deixei-me descair e recuei um pouco, mas algo dentro de mim me dizia que não podia perder um segundo sem te ver. Não saberia quando te poderia contemplar de novo e por isso todos os segundos eram muito preciosos. Avancei, sempre muito cautelosamente, e ajustei o olho ao meu “portal”. Estavas cansado e o teu respirar era pesado. Quanto mais olhava para ti, mais tinha a certeza de que não podias ser real. Eras um anjo caído de um céu onde a beleza era mais natural que o próprio respirar dos deuses. Olhei, inicialmente, para o teu cabelo castanho ondulado que com as luzes do prédio ganhava um brilho sedutor; numa altura em que a vontade de te ver logo por completo combatia com a vontade de analisar e apreciar cada célula tua, baixei os olhos em direção às tuas sobrancelhas que de tão imponentes que eram poderiam facilmente comandar um exército de milhões de soldados, fixei-me na imensidão dos teus olhos azuis que me faziam lembrar o mar e em como me poderia perder facilmente nas suas profundezas; o teu nariz a erguer-se como uma tímida onda e os teus lábios cor de cereja a implorarem pelos meus. 

Recuperaste rapidamente o fôlego, mas pareceu-me que passaram horas desde que paraste ali para descansar. Começaste a subir aqueles degraus que um dia eu também desejava subir contigo (que raiva daqueles degraus!). Subias e eu via-te subir. Desejava que as escadas fossem sempre a direito para te continuar a ver enquanto subias, mas perdi-te e o meu portal não te conseguiu recuperar. Esperei atrás da porta à espera que descesses para ires buscar mais uma caixa, mas não vieste e eu comecei a pensar que talvez aquela fosse a última caixa que carregarias naquele dia. 

Trémula, afastei-me da porta com a cabeça a fervilhar e fui para o quarto. Naquele dia, adormeci a pensar em ti e cada vez que ouvia o barulho de uma porta no interior do prédio saltava da cama, ignorava os chinelos perfeitamente alinhados com o tapete e arrependia-me no momento a seguir porque o chão estava completamente gelado. Contornava todos os obstáculos que havia no chão porque o que verdadeiramente me importava era conseguir chegar à porta o mais rapidamente possível. E, com uma precisão cirúrgica, encaixava o olho novamente no meu “portal” com a esperança de que fosses tu a descer só para te ver passar mais uma vez. 

Desejava no íntimo do meu ser que passasses só mais uma vez por mim. Bastava-me olhar para ti para o meu dia se tornar infinitamente melhor. Bastava-me ver-te para estar bem.  

Acalmas e irrequietas o meu espírito! Tens um poder incontrolável dentro de ti, um poder perigoso para um simples mortal carregar tão discretamente como tu o fazes. Mas, desconfio que sejas um anjo caído do céu, por isso, não faz sentido espantar-me com esse teu dom. Confesso que adoraria conhecer e explorar esse teu poder até ao mais ínfimo pormenor, poder encontrar-te nas escadas e dizer-te um tímido e envergonhado “olá”, mas por agora fico-me do outro lado da porta, onde te posso ver sempre que passares por mim. 

Neste momento o meu poder é ainda ser invisível, estar escondida atrás do que aparenta ser um simples pedaço de madeira, mas, que, na realidade, representa a entrada para o mundo onde sempre me senti segura e protegida. Quando apareceste na minha vida, esses sentimentos foram-me escorrendo da mão como areia no deserto. Agora, quero libertar-me das amarras deste poder que me impede te ver frente a frente. Quero mostrar-te quem sou! Quero fundir-me contigo! Imagino uma batalha nunca antes vista na qual os nossos poderes lutam entre si saindo ambos vencedores e, finalmente, nos unimos num corpo, numa alma só. 

Sei que não consigo controlar isto, mas não deixo de tentar. Sonho todos os dias com o nosso primeiro momento e em como, finalmente, olhamos um para o outro, tímidos e envergonhados, e, aniquilada a timidez, nos aproximamos caindo nos braços um do outro. 

Não me julgues! Não enlouqueci...Sou vítima de uma força em que nunca acreditei e da qual não me consigo libertar. Estou presa e sem escapatória. 


 




Envie isto: 20:48 Wed, 20 March 2024 by : Delgado Tiago age : 17