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Cruz Maria

Regresso às origens

 

ATO I

Cena I

Avó Alice, Maria e Eva

(Junto à lareira, a avó Alice espera com impaciência e ansiedade a chegada das suas netinhas. De repente, sente que chegou um carro, o cão ladra insistentemente, ela dirige-se para a porta).

AVÓ ALICE: És tu, minha Maria?

MARIA: Sim, sou, avó.

AVÓ ALICE (abre a porta, com emoção, abre os braços e aconchega junto do seu peito a neta e a bisneta): Meus amores! (Suspira) Ah, como eu esperei por este dia!

 MARIA: Avó, minha querida avozinha! Nem imaginas como estou feliz por te ver e por estar aqui novamente.

AVÓ ALICE (pega na sua bisneta ao colo, dá-lhe um grande beijo e acaricia-lhe os longos cabelos com ternura): A tua menina está cada vez mais parecida contigo!

MARIA: Ela está muito cansada, quer dormir! Eu quero muito conversar contigo.

AVÓ ALICE (dirige-se para a cozinha, aquece um copo de leite e dá-o à sua bisneta): Bebe minha filha está morninho. (Eva bebe o leite e é encaminhada pela avó Alice para o quarto. Esta aconchega-a) Dorme bem, minha querida filha. Amanhã vamos à feira do folar.

EVA: Esta bem, avó. Boa noite!

AVÓ ALICE (vem para junto da Maria): Em que estás a pensar?

MARIA (olha para tudo o que a rodeia com grande nostalgia e abraça a avó com intensidade): Posso fazer uma torrada aqui nas brasas e regá-la com azeite?!

AVÓ ALICE: Claro que podes! Não queres um bocado de presunto com pão de centeio, ou uma alheira grelhada. Tu gostavas tanto de comer grelos cozidos com uma alheira grelhada!

MARIA: Ainda adoro! Gostava tanto da tua comidinha, pois tu cozinhavas sempre com tanto amor para mim! No inverno, a tua comida feita nos potes que colocavas junto à lareira tinha um sabor inigualável!

AVÓ ALICE: Amanhã, vou-te preparar um pequeno almoço daqueles que tu adoravas.

MARIA (sorriu): Está bem, avó., mas não te esqueças do café feito no pote de ferro! Que saudades!

AVÓ ALICE (dá uma gargalhada): Eu nunca me esqueço de ti, nem daquilo que tu gostas. Muitas vezes, quando estou a comer sozinha, penso em ti e como tu gostaria de te ter aqui junto de mim, para nos deliciarmos com as coisas boas que há nesta Terra.

MARIA (aproximando-se da avó, pega-lhe- na mão): Vou regressar, avó! No próximo ano letivo venho trabalhar para Chaves, pois houve concurso, eu concorri e fiquei lá efetiva, num dos Agrupamentos de Escolas. Eu quero muito voltar a viver aqui em Valpaços, mas tenho receio que a Eva não se adapte aqui!

AVÓ ALICE: Quem é que não se adapta aqui? Que conversa é essa?! Aqui em Valpaços vive-se muito melhor do que em Lisboa.

MARIA: Eu sei, eu sei! No entanto, o pai da Eva estava constantemente a falar mal daqui e a dizer que eu ainda vivia com Valpaços entranhado no meu coração, mas que a Eva era de outro mundo e nunca se ia adaptar aqui!

AVÓ ALICE (aperta a mão da neta com força): As crianças têm maior poder de adaptação do que os adultos pensam. Eu prometi-lhe que amanhã a levava à feira do folar. Quero conversar com ela e conhecê-la melhor. Acaba lá de comer a torrada e vamos dormir que já é tarde. Durante o dia de amanhã temos tempo de por a conversa em dia!

Cena II

Avó Alice, Maria, Eva, Carlota e Dona Antonieta

(No dia seguinte, avó Alice prepara o pequeno almoço, com muito carinho. Vai ao jardim colher umas belas tulipas de cores diversificadas para colocar no centro da mesa, onde não falta folar, presunto, pão de centeio, torradas de azeite, queijo fresco, leite e o famoso café que a neta adora).

Maria (aproxima-se da avó e dá-lhe um beijo, sussurrando ao ouvido): Tinha tantas saudades suas e desta “Terra Abençoada”. Estive toda a noite a pensar! Aqui eu e a minha filha teremos outra qualidade de vida. Em Lisboa, as rendas de casa são muito caras, o colégio onde a Eva estuda também é caríssimo. Além disso, já não aguento mais o trânsito intenso, nem o barulho! Eu preciso de viver num local calmo e que me proporcione bem-estar físico e psíquico. Eu sempre quis voltar! Sinto saudades de tudo o que vivi aqui. Quando vejo fotografias, quando sinto determinados cheiros, quando escuto uma voz que me é familiar, quando me lembro do passado, eu sinto saudades. Sinto saudades dos amigos que nunca mais vi, de pessoas com quem nunca mais falei, com quem nunca mais me cruzei; sinto saudades dos que foram e de quem não me despedi direito. Daqueles que, como a minha querida mãe, não tiveram como me dizer adeus; sinto saudades das coisas que vivi e das que deixei passar, sem viver. Quantas vezes sinto vontade de encontrar alguma coisa, não sei o quê, mas sei onde. Quero muito resgatar alguma coisa que não sei o que é, mas sei onde perdi.

AVÓ MARIA: Não te quero ver assim triste. Come e bebe, que tudo se vai resolver da melhor forma!

MARIA (enquanto toma o pequeno almoço continua a expressar os seus sentimentos): Avó, sinto saudades de tudo o que marcou a minha vida e tudo isso está aqui, em Valpaços! Em agosto, estarei aqui, para ficar definitivamente! Tenho esperança que a Eva goste daqui, pois para eu ser completamente feliz, a minha filha também tem de estar feliz. Já bastou o que sofreu, pois o pai dela não era uma pessoa fácil de lidar.

AVÓ ALICE (muito zangada e cheia de convicção): Esse aí era um vaidoso arrogante. Sempre se achou mais do que os transmontanos, andava sempre com piadas! Tomara ele chegar aos calcanhares dos valpacenses. A nossa Terra é maravilhosa. Nós temos tudo, azeite, vinho, fruta, legumes, cereais…  Aqui, não se veem pessoas a mendigar nas ruas, não há sem abrigo. Nesta Terra existe partilha, empatia, solidariedade, toda a gente se conhece e entreajuda. Não há lixo espalhado pelas ruas, os campos parecem verdadeiros jardins. Temos um excelente Agrupamento de Escolas, três bandas musicais, hospital, centros de saúde, tribunal, centro cultural, finanças, loja do cidadão, câmara municipal, juntas de freguesia, postos da Guarda Nacional Republicana, supermercados, farmácias, padarias… Nós temos ao nosso dispor todos os bens e serviços que nos permitem ter bem-estar e uma excelente qualidade de vida. Nunca gostei do teu ex-marido, pois não passava de um “pavão armado”.

MARIA (passando a sua mão suavemente no rosto da avó): Não se chateie. Eu sei muito bem que o concelho de Valpaços é um verdadeiro paraíso. Ainda tenho a esperança de ser aqui muito feliz, novamente! Quando fui para Lisboa, foi apenas para ir para a Universidade, mas a vida dá tantas voltas! Acabei por ficar, mas sempre com enorme esperança de regressar.

AVÓ ALICE (com um olhar cheio de sabedoria): Minha filha, as coisas mais belas da vida nem sempre são as que nos fazem sorrir, mas aquelas das quais saímos vencedoras. Há quem diga que a esperança é a última a morrer. Eu penso que a esperança não é a última a morrer, a esperança é o primeiro sentimento a nascer quando todos os outros baixaram os braços.

MARIA: Eu só quero ter uma vida tranquila e que a minha filha seja feliz.

AVÓ ALICE: A felicidade que procuramos não tem de ter um permanente sorriso, pois a beleza de um rio não está apenas nas águas calmas e na serenidade com que fluem… a serenidade das águas está em saberem que foram muitas e difíceis as descidas e as quedas, mas, mesmo assim, o sonho de chegar ao oceano nunca deixou de estar presente.

MARIA (com os olhos cheios de lágrimas): Tu és uma sábia, minha querida avó, mãe e verdadeira amiga. Amanhã vou regressar a Lisboa, pois tenho de estar presente nas reuniões de avaliação. A Eva pode ficar aqui contigo estes próximos dias?

AVÓ ALICE (sorrindo): Claro que pode. Vais ver que quando a vieres buscar, ela já não vai quer sair daqui!

MARIA (emocionada e com as lágrimas a escorrerem pela face): Quem me dera que isso acontecesse! Depois de tanta tristeza e desilusão que tenho vivido nos últimos tempos, esse seria o maior presente que poderia receber.

AVÓ ALICE: Tu não chores! Jamais te quero ver chorar, pois a vida tem fases e cada fase devemos acreditar que é uma passagem para algo melhor. Não baste seres o que és, se onde estás não tens mais caminho para seguir. Se aquilo que carregas são desilusões e dores, não fiques triste, pois o que carregas contigo são lições de vida. Mesmo que as coisas não tenham acontecido como desejavas, saíste viva, mesmo que com cicatrizes. A tua história dorida dar-te-á coragem para seguires a tua viagem.

MARIA (enxugando as lágrimas): Tens toda a razão, avó. Vou mandar fazer umas obras na casa que herdei da minha mãe. Fico aqui mesmo ao teu lado. Além disso, posso ter um jardim e uma horta com produtos semeados e plantados por mim, como sempre sonhei.

AVÓ ALICE (olha nos olhos da neta e cheio de emoção): Não imaginas a alegria que me dás! Tenho-me sentido muito só. A solidão também mata, sabias?

(Eva vem ao encontro da mãe e da avó e fica espantada ao ver tanta comida em cima da mesa, mas o que mais a espanta são as belas tulipas que estão colocadas numa linda jarra no centro da mesa).

EVA (dá um beijo à avó e à mãe): Bom dia? Onde foram comprar estas flores tão lindas?!

AVÓ ALICE (sorrindo): São do meu jardim! Come o que gostares. Depois vamos à feira do folar.

 

ATO II

Cena I

(Já no espaço da feira, Eva fica maravilhada)

EVA: Avó que linda feira! Nunca fui a uma feira como esta, pois isto é uma festa!

AVÓ ALICE: Aqui fazem esta feira todos os anos. Vês ali aquela menina? É a Constança, está vestida com a farda da banda, pois daqui a meia hora vão atuar. Queres ver as bandas a tocar?

EVA: Sim, gostava muito.

(A avó Alice dá a mão à Eva e vão para junto da Constança, que também está acompanhada pela sua avó Antonieta.)

AVÓ ALICE (toda sorridente): Então vizinhas também vieram à feira?

CONSTANÇA (com grande curiosidade): Quem é essa menina?

EVA (com alguma timidez): Sou a Eva.

(A avó Alice faz as apresentações e enquanto as meninas conversavam, fala discretamente com a Dona Antonieta.)

DONA ANTONIETA (com grande amabilidade aproximou-se das meninas): Constança, não queres convidar a Eva para ir à nossa casa?

CONSTANÇA (com grande alegria): Claro que quero! Até podemos fazer um lanche para comer ao ar livre e depois podemos andar de bicicleta!

DONA ANTONIETA: Então está combinado. Amanhã, depois de almoço, vamos as quatro passear.

(A Constança despede-se da Eva, pois a banda já vai iniciar a atuação.)

AVÓ ALICE: Eu adoro ouvir a banda a tocar!

EVA (maravilhada): Avó, eu adorava tocar numa banda. Sempre quis aprender a tocar flauta transversal, mas nunca tive oportunidade!

AVÓ ALICE (muito surpreendida): Aqui no concelho há três bandas. Podes escolher em qual queres aprender.

EVA: Avó, mas eu não moro aqui!

DONA ANTONIETA (que já está a par de tudo): Não moras aqui, mas podes vir a morar. Pede à tua mãe para virem viver para Valpaços. Até podes tocar na mesma banda que a Constança.

AVÓ ALICE: Gostavas de vir morar para Valpaços?

EVA (muito pensativa): Não sei, avó!

 Ato III

1ªcena

(No dia seguinte, bem cedo, Maria despede-se da avó e da filha.)

MARIA: Porta-te bem, Eva. Aproveita a companhia da avó.

EVA (dá um abraço à mãe): Boa viagem. Não te preocupes comigo que eu fico bem. Sabes? Ontem, quando fui à feira com a avó, conheci a Dona Antonieta e a Constança. Hoje vou com a avó a casa delas. Vamos andar de bicicleta e fazer um piquenique!

MARIA (despede-se e pisca o olho à avó Maria): Pode ser, pode ser que tudo corra como eu desejo!

(Eva está toda entusiasmada com a avó a fazer um bolo de amêndoa, para levar para o piquenique.)

EVA: Avó, tens uma toalha daquelas todas coloridas para levarmos para o piquenique?

AVÓ ALICE (sorri): Tenho, minha querida. Também tenho uma linda cesta para colocarmos o lanche!

EVA (com alguma timidez): Posso contar-te um segredo?

AVÓ ALICE: Claro que podes. E quero que saibas que podes confiar em mim.

EVA: Eu nunca fiz um piquenique!

AVÓ ALICE: Vais gostar, tu vais ver! Podes levar a bicicleta que era da tua mãe!

EVA (muito surpreendida): Tu ainda tens a bicicleta que era da minha mãe!

AVÓ ALICE (entregou com grande emoção a bicicleta da Maria à Eva): Esta é a bicicleta da tua mãe!

ATO IV

1ªcena

(A Avó Alice e a Eva vão todas felizes para casa das amigas. A tarde é muito divertida.  As duas meninas brincam, saltam, andam de bicicleta e comem com grande satisfação o lanche ao ar livre. A noite está a aparecer e a despedida é inevitável.)

EVA (em casa da avó, Eva, apesar de estar a brincar com o cão, demonstra alguma ansiedade): Avó, posso ficar aqui contigo durante todo o período de férias?

AVÓ MARIA (dá uma gargalhada): Claro que podes. Até podes tu e a tua mãe virem definitivamente para cá!

EVA (com alguma insegurança e timidez): Avó achas que a minha mãe gostaria de regressar a Valpaços?

AVÓ ALICE (surpreendida, mas muito feliz): E tu, minha querida, gostarias de viver aqui?

EVA (sem hesitar): Gostaria muito!

AVÓ ALICE: Então telefona à tua mãe e pergunta-lhe?

(Eva corre para o telefone e, após terminar a chamada, vem com um enorme sorriso para junto da avó.)

EVA: Avó, a minha mãe disse-me que sempre teve o desejo de regressar às suas origens. Em agosto já vimos morar definitivamente para aqui!

AVÓ ALICE (abraçou a bisneta): Estou tão feliz, minha querida!

EVA (pegou no cão ao colo e com enorme alegria começou a dançar e a cantar): Eu venho, eu venho, eu venho para Valpaços!

(A Avó Maria observa a alegria da bisneta. De seguida, desloca-se para junto da janela, olha o horizonte e agradece de forma oculta o presente que depois de tantos anos lhe foi devolvido. Aqui a cena fica suspensa, e a luz centra-se apenas no rosto da avó Alice, que fala para os espetadores na plateia.)

AVÓ ALICE: A magia da vida passa por ter sempre esperança e acreditar que os nossos sonhos se podem realizar.




Envoyé: 00:19 Tue, 26 March 2024 par: Cruz Maria age: 16